A _ cor _ dar , é preciso !


quarta-feira, julho 30, 2014

Côr de indulgência





















Realmente , vivemos muito sombrios !
A inocência é loucura . Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade . Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar .

Que tempos são estes , em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes .
Pois implica silenciar tantos horrores
!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda
?

É certo , ganho o meu pão ainda ,
Mas acreditai-me ,  é pura casualidade .
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me .
Por enquanto as coisas me correm bem
[ se a sorte me abandonar estou perdido]
E dizem-me . . .   Bebe , come! Alegra-te, pois tens o quê
!

Mas como posso comer e beber ,
se ao faminto arrebato o que como ,
se o copo de água falta ao sedento
?
E todavia continuo comendo e bebendo .

Também gostaria de ser um sábio .
Os livros antigos nos falam da sabedoria ...
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e , sem temores ,
deixar correr o breve tempo .
Mas  evitar a violência ,
retribuir o mal com o bem ,
não satisfazer os desejos , antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria .
E eu não posso fazê-lo.
Realmente  vivemos tempos sombrios .

Para as cidades vim em tempos de desordem ,
quando reinava a fome .
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles .
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra .

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza .
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros .
A palavra traiu-me ante o verdugo .
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam , sem mim , mais seguros , — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos ,
lembrai-vos também ,
quando falardes das nossas fraquezas ,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos , com efeito ,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos ,
através das lutas de classes ,
desesperados ,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação .

E , contudo , sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. 
Ah , os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.


Vós , porém , quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem ,
lembrai-vos de nós
com indulgência  .






Bertolt  Brecht
imagem _  Sherry  L.  Short 

2 comentários:

Lilá(s) disse...

Bem oportuno!
Bjs

Luis Filipe Gomes disse...

É um texto de encher a boca. É um texto para voz alta, como um manifesto ou uma herança. É um texto a ver o futuro.