A _ cor _ dar , é preciso !


sábado, maio 25, 2019

Côr de musica que gosto


Côr de tristeza





























Dás reviravoltas ao corpo e à imaginação para afastar a tristeza. 
Mas quem te disse que é proibido estar triste
A verdade é que, muitas vezes, não há nada mais sensato que estar triste; todos os dias acontecem coisas, aos outros e a nós, que não têm remédio, ou melhor, que tem esse antigo e único remédio de nos sentirmos tristes.


Não deixes que te receitem alegria, como quem prescreve uma temporada de antibióticos ou colheres de água do mar em estômago vazio.
Se deixares que te tratem a tua tristeza como se fosse uma perversão ou, na melhor das hipóteses, uma doença, estás perdida . Além de triste, irás sentir - te culpada. E tu não tens culpa de estar triste. 
Não é normal que sintas dor quando te cortas? Não arde a pele se te dão uma chicotada?


Pois, do mesmo modo, o mundo, a vaga sucessão dos factos que acontecem (ou dos que não acontecem) criam um fundo de melancolia. Já o dizia o poeta Leopardi: "tal como o ar enche os espaços entre os objectos, assim a melancolia enche os intervalos entre um prazer e outro".


Vive a tua tristeza, tactei-a, desfolha-a nos teus olhos, molha-a com lágrimas, envolve-a em gritos ou em silêncio, copi-a em cadernos, anota-a no teu corpo, anota-a nos poros da tua pele. Pois só se não te defenderes fugirá, por momentos, para outro lugar que não o centro da tua íntima dor.


E para saboreares a tua tristeza vou recomendar-te também um prato melancólico . . . couve flor em brumas. 
Trata-se de cozer em vapor de água essa flor branca, triste e consistente. Devagar, com aquele odor que tem o próprio hálito que a boca exala nas lamentações, ela vaia cozendo até amaciar. E envolta  em bruma, no seu vapor fumegante, põe-lhe azeite e alho e alguma pimenta, e salga-a com lágrimas que sejam tuas. Então saboreia-a devagarinho, mordendo-a do garfo, e chora mais, e chora ainda, que aquela flor acabará por ir chupando a tua melancolia sem te deixar seca, sem te deixar tranquila, sem te roubar a única coisa que é tua naquele momento, a única coisa que já ninguém te poderá tirar, a tua tristeza; mas com a sensação de teres partilhado com essa flor imarcescível, com essa flor absurda, pré-histórica, com essa flor que os noivos nunca pedem nas floristas, com essa flor de couve que ninguém põe nas jarras, com essa anomalia, com essa tristeza florescida, a tua própria tristeza de couve-flor, de planta triste e melancólica.









Héctor Abad Faciolince   _ Receitas de Amor para Mulheres Tristes _

imagem  _   Marta  Orlowska

domingo, maio 19, 2019

Côr de Teia






























Se o meu desgosto é ser , na grande teia ,
mensagem virtual ou sopro vago ,
talvez me qeiras tu dar o teu rosto,
e eu , no teu corpo me transforme , em alma .









António Franco Alexandre

domingo, maio 12, 2019

Côr de Porto Sentido


Côr de apodrecidos




























Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos . . .
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.









Eugenio de Andrade _  As  mãos e  os  frutos  ,  1948  _ 
imagem _ Nicoleta  Caravia  _

sábado, maio 11, 2019

Côr de Piaf .


Côr de Piaf .




Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,
ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do «ça ira»,
ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma
de não ter tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
das multidões solitárias que teimam em resistir
como melodias valsando suburbanas
nas vielas do amor
e do mundo.
Quem tinha assim a morte na sua voz
e na vida.
Quem como ela perdeu
toda a alegria e toda a esperança
é que pode cantar com esta ciência
o desespero de ser-se um ser humano
entre os humanos que o são tão pouco.



Jorge  de   Sena 

segunda-feira, maio 06, 2019

Côr de nós sabemos porquê






















Esta   é   a   única   verdade
sabemos   que   vos   é   difícil   aceitá - la
envoltos como  estais   em   suborno   e   usura ,
bancos  alta   finança   empréstimos   externos
E   no   entanto ,   esta  manhã  um   pássaro
pousou   à   vossa   beira   embora
inutilmente



A   pequena   dactilógrafa   matou - se
nós   sabemos   porquê

Um   carpinteiro   desempregado   rasgou   a   roupa
e  saiu   cantando   para   a  rua
nós   sabemos   porquê

Uma   noite
a   jovem    costureira   não   voltou   para   casa
nós    sabemos   porquê

Um poeta
roeu   as   unhas   enquanto   foi   possível
mas   faltou - lhe   a   coragem   no   momento   derradeiro
nós   sabemos   porquê

Nós   sabemos   porquê

Nós   sabemos   porquê

E   no  entanto  é   doce   dizer  pátria ,
sonhar   a   terra   livre   e   insubmissa
inteiramente   nossa ,
Sonhá - la  . . .

pura ,  alegre ,  acolhedora  ,  virgem

de  medos   mortos   insepultos  .






Daniel   Filipe    _   Pátria   lugar   de  exílio  _
imagem  _   Holly   Bedrosian  _



E     o   lavar  de   mãos  continua  . . . 

Côr de musica que gosto


domingo, maio 05, 2019

Côr de cicatriz



























Remendo  o  coração ,  como   a  andorinha
remenda  o  ninho  onde  foi  feliz .
Artes  que  o  instinto  sabe  ou  adivinha . . .
Mas   fico  a  olhar  depois  a  cicatriz .














Miguel   Torga  _ Poesia  Completa _
imagem _  Alvaro  Arteaga  _

Côr de musica que gosto


quinta-feira, maio 02, 2019

Côr de Gato .


























Bichos polémicos sem o querer , porque sábios, mais inquietantes, talvez por isso. Nada é mais incómodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece. O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência.

O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis. Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu. Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado? Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?


Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive à custa dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. Gato não.

Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele depende, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso. "Falso" porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afecto com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.


O gato devolve ao homem a exacta medida da relação que dele parte. Sábio, é espelho. O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação. Nada pede a quem não o quer. Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige. Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente, é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano, mas se comporta como um lorde inglês.


Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não gosta de  gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende do afago.


A relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de afecto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.

O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode, ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós. Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe "ler" pensa que "ele" não está ali. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.


O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluídos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge silencioso, meditativo e sábio monge, a nos devolver as perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado.


O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas. O gato é uma lição diária de afecto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção.


Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação quer afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato! Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos os músculos, preparando-os para a acção imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase 15 minutos) se aquecendo para entrar em campo.


O gato sai do sono para o máximo de acção, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, a qual ama e preserva como a um templo. Lição de saúde sexual e sensualidade. Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias. Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal. Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio. Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contacto com o mistério, com o escuro, com a sombra. Lição de religiosidade sem ícones. Lição de alimentação e requinte. Lição de bom gosto e senso de oportunidade. Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências.


O gato é uma chance de interiorização e sabedoria, posta pelo mistério à disposição do homem. 




Artur de  Távola 
imagem _ Paul  Lung _

quarta-feira, maio 01, 2019

Côr de 1º de Maio


























A todos
Que saíram às ruas
corpo - máquina cansado ,
A todos
Que imploram feriado,
Às costas que a terra extenua  
Primeiro de Maio !
Meu mundo , em primaveras ,
Derrete a neve com sol gaio .
Sou operário
Este é o meu Maio!
Sou camponês
Este é o meu mês .
Sou ferro
Eis o maio que eu quero!
Sou terra 
O Maio é minha  era !






Vladimir Maiakovski