A _ cor _ dar , é preciso !


sexta-feira, junho 18, 2010

Côr de José Saramago .



No dia seguinte ninguém morreu .

Eram onze horas quando a campaínha da porta tocou .
Algum vizinho com problemas , pensou o violoncelista ,
e levantou-se para abrir .
Boas noites , disse a mulher do camarote. Boas noites , respondeu o músico , esforçando-se por dominar o espasmo que lhe contraía a glote .
Como vê resolvi ficar _ respondeu a mulher _ Mas partirá amanhã , a isso me comprometi . Suponho que veio para me entregar a carta , que não a rasgou _ Sim , tenho-a aqui na minha bolsa . Dê-ma então _
Temos tempo . Atrevo-me a pedir-lhe um favor . Compense-me de ter faltado ontem ao concerto _ Não vejo de que maneira _


Tem ali um piano . Nem pense nisso , sou um pianista mediocre .
Ou o vioncelo . É outra coisa , sim poderei tocar - lhe uma ou duas peças .
Posso escolher , perguntou a mulher . Sim ...
A mulher pegou no caderno da suite número seis de bach ...

/
Quando ele terminou , as mãos dela já não estavam frias , as suas ardiam , por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada , quando o violoncelista perguntou... Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu. Não , ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto , despiram-se e o que estava escrito que aconteceria , aconteceu enfim , e outra vez , e outra ainda .Ele adormeceu , ela não. Então ela, a morte , levantou-se , abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano , metida entre as cordas do violoncelo , ou então no próprio quarto , debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava.
Não o fez .
Saiu para a cozinha , acendeu um fósforo , um fósforo humilde , ela que poderia desfazer o papel com o olhar , reduzi-lo a uma implacável poeira , ela que podia pegar- lhe fogo só com o contacto dos dedos , e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias , que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte poderia destruir. A morte voltou para a cama , abraçou-se ao homeme , sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia , sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras.

No dia seguinte ninguém morreu.
!
*
José Saramago _ As intermitências da morte _

*
*
Mas Hoje ... ... morreu ...



José Saramago !

1 comentário:

Lilá(s) disse...

Mais uma perda...estamos mais pobres.
Bjs