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quarta-feira, março 28, 2012

Côr de direito ao delírio



















No século vinte e um ,
se ainda estamos aqui ,
todos nós seremos gente do século passado
e , pior ainda , seremos gente do milênio passado.
Ainda não podemos adivinhar o tempo que será,
sim que temos , ao menos , o direito de imaginar
o que queremos que seja.
As Nações Unidas proclamaram
extensas listas de direitos humanos ,
mas a imensa maioria da humanidade
não tem mais que o direito
de verouvir e calar.
Que tal se começarmos a exercer o jamais proclamado
direito de sonhar ?
Que tal se deliramos por um tempinho ? 
ao fim do milénio ,
vamos fixar os olhos mais além da infâmia
para adivinhar outro mundo possível . . .
O ar estará limpo de todo veneno que não venha
dos medos humanos e das humanas paixões .
As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel ,
nem serão programadas pelo computador ,
nem serão compradas pelo supermercado ,
nem serão assistidas pelo televisor .
O televisor deixará de deixar de ser
o membro mais importante da família .
As pessoas trabalharão para viver ,
em lugar de viver para trabalhar .
Se incorporará aos códigos penais
o delito de estupidez ,
que cometem os que
vivem para ter ou para ganhar,
em vez de viver
por viver e só .
Como canta o pássaro,
sem saber que canta ,
e como brinca a criança ,
sem saber que brinca.
Em nenhum país irão presos os rapazes
que se neguem a cumprir o serviço militar ,
mas os que queiram cumpri-lo .
Os economistas não chamarão nível de vida
ao nível de consumo ,
nem chamarão qualidade de vida
à quantidade de coisas .
Os cozinheiros não mais acreditarão
que as lagostas adoram que as fervam vivas .
Os historiadores não acreditarão mais
que os países adoram ser invadidos .
O mundo já não estará em guerra contra os pobres ,
mas contra a pobreza .
E a industria militar não terá mais remédio
que declarar-se falida .
A comida não será uma mercadoria,
nem a comunicação um negócio .
Porque a comida e a comunicação
são direitos humanos .
Ninguém morrerá de fome ,
porque ninguém morrerá de indigestão.
As crianças de rua não serão tratados
como se fossem lixo ,
porque não haverá crianças de rua.
As crianças ricas não serão tratadas
como se fossem dinheiro ,
porque não haverá crianças ricas .
A educação não será o privilégio
dos que possam pagá-la ,
e a polícia não será a maldição
de quem não pode comprá-la .
A justiça e a liberdade,
irmãs siamesas ,
condenadas a viver separadas ,
voltarão a juntar-se ,
voltarão a juntar-se bem grudadinhas ,
costa contra costa.
A perfeição continuará sendo
o aborrecido privilégio dos deuses.
Mas neste mundo, 
neste mundo desajeitado,
cada noite será vivida
como se fosse a última ,
e cada dia como se fosse o primeiro.



Eduardo   Galeano  _  De  pernas pro  ar  _
Michele   Van  Cotten

1 comentário:

Rua Sem Dono disse...

Maria

Que texto lindo, só com sua delicada e sagaz sensibilidade és capaz de nos trazer tamanha beleza.

Beijos