A _ cor _ dar , é preciso !


quinta-feira, abril 28, 2016

Côr de Mário de Sá Carneiro





















 Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas , eu hesito ,
E detenho-me às vezes na torrente 

Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minh'alma nostálgica de além ,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto ,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a fôrça de sumir também.

Porque eu reajo . A vida , a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma ,
Correr no azul á busca da beleza.

É subir, é subir àlem dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados resar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d'irreal .
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar côres endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada ,
E numa extrema-unção d'alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...

Asa longinqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor ,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra , vertigem, ascensão - Altura
!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

Miragem rôxa de nimbado encanto 

Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz ,
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz...

O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus
!
A côr já não é côr , é som e aroma
!
Vem-me saudades de ter sido Deus ...

Ao triunfo maior, avante pois
!
O meu destino é outro , é alto e é raro.
Únicamente custa muito caro ...
A tristeza de nunca sermos dois . . .








Mário de Sá  Carneiro 
imagem _  Almada  Negreiros _

1 comentário:

Luis Filipe Gomes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.